sexta-feira, 23 de abril de 2010

SEMENTE E FRUTO

Um dia, houve.
Eu era jovem, cheia de sonhos.
Rica de imensa pobreza
que me limitava
entre oito mulheres que me governavam.
E eu parti em busca do meu destino.
Ninguém me estendeu a mão.
Ninguém me ajudou e todos me jogaram pedras.

Despojada. Apedrejada.
Sozinha e perdida nos caminhos incertos da vida.
E fui caminhando, caminhando...
E me nasceram filhos.
E foram eles, frágeis e pequeninos,
carecendo de cuidados,
crescendo devagarinho.
E foram eles a rocha onde me amparei,
anteparo à tormenta que viera sobre mim.

Foram eles, na sua fragilidade infante,
poste e alicerce, paredes e cobertura,
segurança de um lar
que o vento da insânia
ameaçava desabar.
Filhos, pequeninos e frágeis...
eu os carregava, eu os alimentava?
Não. Foram eles que me carregaram,
que me alimentaram.

Foram correntes, amarras, embasamentos.
Foram fortes demais.
Construíram a minha resistência.
Filhos, fostes pão e água no meu deserto.
Sombra na minha solidão.
Refúgio do meu nada.
Removi pedras, quebrei as arestas da vida e
[plantei roseiras.
Fostes, para mim, semente e fruto.
Na vossa inconsciência infantil.
Fostes unidade e agregação.

Crescestes numa escola de luta e trabalho,
depois, cada qual se foi ao seu melhor destino.
E a velha mãe sozinha
devia ainda um exemplo
de trabalho e de coragem.
Minha última dívida de gratidão
aos filhos.
Fiz a caminhada de retorno às raízes ancestrais.
Voltei às origens da minha vida,
escrevi o "Cântico da Volta".

Assim devia ser.
Fiz um nome bonito de doceira, glória maior.
E nas pedras rudes do meu berço
gravei poemas.

Cora Coralina

quinta-feira, 22 de abril de 2010

ensimesmando...

Sim, por hora tenta-se encontrar a linguagem que alcance o outro, sem que deste se faça afastamento.
Difícil a comunicação com a palavra, prefiro mesmo a pureza do que me sobe as costas, que me alcança o ouvido - aquele da nuca, não o outro.
Dizer o amor é incompreender-se por vezes.
Nunca se sabe como chegará ao ouvido do outro a palavra que trazemos.
Queria a pureza da palavra, a verdade, a matéria pulsante dela, apenas.
Amigo, teu coração está aberto aqui...
Pulula nossos pensamentos e desencontros. Quero o ombro, a tranquilidade do ombro que nos cala e nos faz dizer tudo ao mesmo tempo.
Que tempo difícil, esse nosso. Sabemos de tudo e não sabemos nada...
Por isso, tentarei agora ficar com a oração que fiz para nós. Que nos tranquilize e nos dê melhores compreensões.
Que nos guarde, apenas, a boa impressão que sempre vem de nossos silêncios absolutos.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Para o Zé

Eu te amo, homem, hoje como
toda vida quis e não sabia,
eu que já amava de extremoso amor
o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos
de bordado, onde tem
o desenho cômico de um peixe — os
lábios carnudos como os de uma negra.
Divago, quando o que quero é só dizer
te amo. Teço as curvas, as mistas
e as quebradas, industriosa como abelha,
alegrinha como florinha amarela, desejando
as finuras, violoncelo, violino, menestrel
e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito
pra escutar o que bate. Eu te amo, homem, amo
o teu coração, o que é, a carne de que é feito,
amo sua matéria, fauna e flora,
seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas
perdidas nas casas que habitamos, os fios
de tua barba. Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo
pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:
“Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas
o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não
ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros”.
Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama
fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.
Te alinho junto das coisas que falam
uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como
o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece,
tira de mim o ar desnudo, me faz bonita
de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega,
me dá um filho, comida, enche minhas mãos.
Eu te amo, homem, exatamente como amo o que
acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando
os panos, se alargando aquecido, dando
a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.
Amo até a barata, quando descubro que assim te amo,
o que não queria dizer amo também, o piolho. Assim,
te amo do modo mais natural, vero-romântico,
homem meu, particular homem universal.
Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.
Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,
a luz na cabeceira, o abajur de prata;
como criada ama, vou te amar, o delicioso amor:
com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso,
me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles
eu beijo.

Adélia Prado

SER TAO MAE

Sim. Escolhi meu caminho.
Tudo tem sido escolhas
Quanto ao impulso
gerado de minhas características
de meus estados
de meu passado
de meu instante
insight
formação
Hoje meu caminho é o que escolho.
Onde vou: não sei.
Mas sei onde não irei mais.